segunda-feira, 19 de maio de 2014

3. Cardoso Fernandes

Tem uma trajectória de vida  direita como  um fio de prumo. Soldado, político e poeta nas horas de lume, como gostava de cunhar  o serões à lareira  da sua casa serrana perto do Caramulo. Intransigente na defesa dos valores republicanos, da cidadania e da cultura, como foi dito  na homenagem que lhe foi feita no Caramulo, em 1998.
António Manuel Cardoso Fernandes nasceu em 1942, em Paranho de Arca, filho de lavradores e primógenito de uma fratria de seis irmãos. Fez a escola no Caramulo e o curso geral dos liceus em Viseu, ao que se seguiu a Academia Militar, que  conclui já em plena guerra colonial. Faz a especialização no Porto, na Escola Prática, e segue a bordo do Vera Cruz para Moçambique, em 1964, como tenente especialista  em transmissões. Um estômago sensível ( doença de Crohn, talvez) obriga-o a a fazer a comissão toda em Lourenço Marques, como instrutor de radiotelegrafistas, longe  dos teatros de operações. Cardoso Fernandes visita muitos  feridos no Hospital Militar de Lourenço Marques ( HM 2237) e começa aí  a conviver com soldados com queda para a canção de intervenção. Participa como letrista em algumas das composiçoes que darão origem ao célebre Cancioneiro do Niassa .

Nesses dias de tédio e guerra ( Cardoso Fernandes: Autobiografia  de um homem íntegro, Ed. Latões, Caramulo, 1998) , o nosso homem começa a cultivar-se. Lê  com inquietação ( op.cit.) Os Centuriões, de Laterguy, emociona-se ( op.cit.)  com Florbela Espanca, entra no mundo de sombras ( op.cit.) de Sophia. No regresso à Metrópole presta serviço na Escola Prática de Administração Militar ( EPAM), em Lisboa, aproveitando para se licenciar em Direito com média final de 12 valores. Mais importante do que os estudos e as rotinas  castrenses é o sobressalto cívico ( op. cit) com que presencia o 25 de Abril. Já com o posto de capitão do Exército Português, foi alheio ao clima conspirativo por factores que o ultrapassaram. Casara em 1971 e nasceram-lhe dois filhos de rajada, o que, aliado ao trabalho e ao curso de Direito não lhe deixou espaço  nem tempo para a política.  Seja como for, recuperou  a tempo de integrar a 4ª Repartição da 5ª Divisão do EMGFA, em Junho de 1974, sob  a direcção do ( então ) coronel Vasco Gonçalves ( que sairia  em Julho para ocupar o cargo de primeiro-ministro).
Cardoso Fernandes continua na 5ªDivisão  quando esta passa a designar-se Divisão  de Assuntos Político-Militares, trabalhando no Centro de Esclarecimento e Informação Pública (CEIP). Aprende com Lenine  e Bukarine nas poucas horas que o expediente lhe deixa vagas.
É ele que, a 11 de Maio de 1975, vai à tipografia, acompanhado de um destacamento do COPCON,  apreender as 15.000 cópias do livro do major  Manuel Barão da Cunha, Radiografia Militar. Cardoso Fernandes dirá mais tarde ( op.cit.), quando confrontado com "uma violação do princípio da liberdade  de expressão   cometido pelo MFA",  que se limitou  a cumprir ordens como bom militar.

Deixa a vida militar em 1980 e inicia a carreira política enquanto advoga em Viseu e no Caramulo. No início tacteia as  várias sensibilidades políticas. Candidata-se pelas listas da  UDP em eleições autárquicas e legislativas, mas depressa se desilude com o clima mesquinho de  intriga e fanatismo esquerdista ( op.cit.). Nesta fase  publica uma monografia sobre  Paranho D'Arca e um livro de memórias da guerra colonial " Na linha da frente: memórias de um patriota contrafeito" ( Ed. Estágio, 1983).  Em 1987 inscreve-se como militante  no PSD e é eleito para a Junta de Freguesia de Paranho D'Arca. O país moderniza-se e é necessária uma mão de ferro e uma alma limpa para gerir os fundos comunitários ( op. cit.). Deixa  a advocacia e dedica-se à construção civil numa sociedade com Fernando Madeira, ex- presidente da  concelhia do PSD de Viseu e primo em segundo grau da sua mulher.
O espírito inquieto não se contenta com o betão e  a vida  partidária. Cardoso Fernandes  tem então a conclusão lógica da sua vida intelectual e  cultural.  Publica em 1995 " Como o PREC destruiu Portugal: radiografia de um ano", que é apresentado em Viseu, por Galvão de Melo, numa sala do hotel Grão Vasco cheia de admiradores e amigos.
Morre em 2003, depois de, já debilitado por um enfarte do miocárdio,  ter trocado uma garrafa de água por uma de lixívia.


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